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manequins
2006-07

manequins, 2006-07_ escultura, apropriação e pintura; materiais variados, tais como: massa epóxi, arame, tinta spray, manequins pré-fabricados em plástico e fibra de vidro, peças de vestiário (calcinha e tênis) e pêlos humanos, dimensões variadas.

A série de manequins foi desenvolvida entre 2006 e 2007. A inspiração inicial dos trabalhos se relaciona com uma viagem realizada por Pedro Meyer à Itália, na qual o artista entrou em contato com a escultura “Hermafrodita Dormindo”. A estátua do “Hermafrodita Dormindo” pertence à coleção do museu romano Palazzo Massimo Alle Terme, é uma cópia em mármore de uma obra mais antiga realizada em meados do século II, encontrada em ruínas romanas.

O tema do Hermafrodita era muito popular na Grécia e em Roma, configurando uma representação mítica. Na mitologia grega, Hermafrodita era filho de Hermes e Afrodite (daí o nome). Ele nasceu masculino e uma ninfa se apaixonou por ele. Hermafrodita, porém, desprezava seu afeto. A ninfa ofendida pediu aos deuses que o punisse – e assim Hermafrodita tornou-se um híbrido – meio homem, meio mulher. Portanto, a reprodução do personagem hermafrodita não tem conotações eróticas – suas imagens foram gravadas em pedra, assim como as figuras de centauros, sátiros, ninfas e outras figuras que povoaram as terras míticas do mundo antigo. Por outro lado, olhando de uma perspectiva moderna, a figura do Hermafrodita é muito intrigante.

A viagem realizada por Meyer à Itália incluiu também a visita à Bienal de Veneza. Essa edição da Bienal (Always a Little Futher, 2005) destacou a obra das “Guerrilla Girls”. Os questionamentos políticos relacionados ao gênero desse coletivo feminista provocaram uma forte impressão no artista.

A primeira obra da série de manequins é a “Vênus”, realizada durante o mestrado em Linguagens Visuais no curso “Linguagem de Configuração Espacial” ministrado por Carlos Zilio. Segue o texto de Pedro Meyer desenvolvido por ocasião da apresentação no mestrado da monografia “Exercícios Comentados”, em 2006:

Vênus
(proposta do exercício “tamanho é documento”, durante a disciplina “Linguagem de Configuração Espacial”, do Professor Carlos Zilio, mestrado em Linguagens Visuais, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O objeto se constitui em um quadril feminino onde no lugar da vagina há um pênis intumescente. Sobre o falo existe uma calcinha sexy translúcida encobrindo-o parcialmente; isto faz com que o órgão não seja notado à primeira vista pelo espectador, exigindo certa atenção. Ao se aproximar e observar com mais acuidade, os espectadores são surpreendidos, alguns riem, outros ficam envergonhados ou excitados.

Para a execução da obra foi realizada uma pesquisa em várias lojas de manequim. Com o manequim escolhido iniciou-se a fase de artesanato: foi montada uma estrutura de arame na região pubiana para fixar a massa plástica (durepox); a massa foi moldada; após secar completamente, todo o conjunto foi pintado de primer cinza (base); em seguida, foram aplicadas várias demãos de tinta spray branca; para finalizar, fui ao centro comercial “Santa Clara 33”, em Copacabana, especializado em roupa íntima, neste local pude encontrar uma calcinha adequada, ao mesmo tempo atraente, branca e que permitisse uma certa transparência. Um fato engraçado ocorreu no momento da compra da lingerie. A vendedora inquiriu brincando: “-Vai se divertir hoje?”. Eu respondi: “-Não, vou usar em um trabalho”. Ela insistiu com certo estranhamento: “-Apresenta o trabalho e depois faz uma brincadeira com a calcinha, um leilão, por exemplo!”.

O trabalho teve várias fontes de inspiração. A mais óbvia foi o jargão popular que muitas vezes brinca com a idéia de “tamanho é (ou não) documento”, no sentido da relação entre o tamanho do órgão sexual masculino e a capacidade de proporcionar mais ou menos prazer. Outra referência foi a origem do fetiche segundo a teoria freudiana. Para Freud o fetiche é o substituto do desejo de encontrar o pênis na mãe: “o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares - não deseja abandonar”, “pois, se uma mulher tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo”. Em casos crônicos, na resolução do complexo de castração o fetichista obtém satisfação sexual com objetos não necessitando propriamente de relações íntimas: os fetichistas “mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo qual lhes facilita a vida erótica”, “Aquilo pelo qual os outros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo fetichista sem qualquer dificuldade”. Segundo Freud o fetiche tem relação com a homossexualidade pois “salva o fetichista de se tornar homossexual, dotando as mulheres da característica que as torna toleráveis como objetos sexuais”. O psicanalista ainda descreve: “peças de roupa interior, que tão freqüentemente são escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher ainda podia ser encarada como fálica”.

Ainda outro mote de Vênus foi a estatuária em mármore. A figura do hermafrodita é muito encontrada em esculturas e pinturas clássicas (gregas e romanas). Vênus recepciona certa influência neoclássica, sua estrutura se refere à escultura em relevo, a configuração formal e a cor simulam a escultura em mármore e ruínas de peças gregas. Esta referência surgiu com certa espontaneidade, ao me apropriar do manequim a alusão já estava presente, pois é comum no design dos manequins a inspiração na escultura clássica, um fake industrial relativamente tosco e primário.

A recepção do trabalho foi muito instigante. Zilio afirmou que nunca havia visto nada parecido com aquele trabalho na pós-graduação da EBA e reconheceu alguma relação (mesmo que distante) com minhas pinturas expostas na parede ao lado. Para ele a obra seria uma abertura de linguagem, possibilitando novas pesquisas, Vênus também apontaria questões centrais da pós-modernidade: fala da quebra de identidades (entre elas a identidade sexual); e, com seu hermafroditismo evidente, fala da arte de minorias (transexual art, gay art). Zilio ainda lembrou de “Etant Donée” (está dado) de Duchamp, obra onde o artista usa um manequim. Ao observar Duchamp através da perspectiva de Vênus encontrei proximidade também com “Rrose Sélavy”, onde o artista usou o próprio corpo como suporte: ao se travestir, ele usou sua própria imagem para falar da ambigüidade sexual, trazer explícito de que masculino e feminino não podem ser rigidamente definidos.

Outras reações ao trabalho também foram marcantes: meus colegas Manuel Fiaschi e Fred Carvalho comentaram que acharam “uma delícia” a calcinha do manequim e ficaram excitados com a peça íntima; Ana Holck me aconselhou a procurar tratamento psicanalítico.

No desenvolvimento do trabalho percebi que os espectadores não reconheciam um distanciamento entre autor e obra. Como Vênus fala de maneira contundente da sexualidade, os questionamentos levantados foram dirigidos ao próprio artista. Uma pessoa chegou a me perguntar qual era a minha opção sexual. Fiquei na dúvida se deveria responder e afetar a leitura do trabalho. Este debate gerou dois pontos interessantes: 1. Como heterossexual discutir a homo-trans-sexualidade era sair do lugar comum, onde quem faz arte gay é necessariamente gay; a partir da minha opção/posição heterossexual trabalhar com singularidade. 2. Em conversa com atriz Louise Cardoso algo ainda mais esclarecedor, e, em certa medida, contrário ao primeiro ponto: para ela no trabalho não há identidade sexual, no trabalho tudo é possível.

Vênus também me aproximou da artista Márcia X; parte de sua obra se constitui em uma profunda investigação da relação entre sexualidade e objetos. Por coincidência e sorte, tive a oportunidade de visitar sua retrospectiva realizada no Paço Imperial em 2005, no Rio de Janeiro.

ⓒ 2023 Pedro Meyer

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